Houve um tempo em que responder “quem eu sou” vinha num caderninho de perguntas, a circular pela sala de aula, com pelo menos umas 20 questões. Era digamos a rede social dos anos 90. Nós escrevíamos nosso nome, data de aniversário, signo, atividades favoritas, comidas preferidas, cor, música, filme…enfim, um verdadeiro questionário!
A seguir, o caderno circulava por todos, para sabermos ainda mais sobre os nossos colegas da turma. E se a verdade não me mente, acho que o caderno virava recordação, porque no fim havia um espaço para escrever algo ao dono ou à dona do caderno.
Hoje em dia, na vida adulta, a resposta não vem escrita em um caderno na sala de aula, nem no ambiente de trabalho…Pelo amor! Mas vem em perfis online ou em encontros presenciais, nos quais, se você reparar bem, quase toda conversa inicia por aquilo que você faz, não por aquilo que você é.
Já agora, quem é você? Saberia responder a esta questão ou ficaria que nem esse meme aqui?
Dizer quem somos não é uma tarefa fácil, ainda mais quando emigramos e nos damos a oportunidade de aprender, mudar, vivenciar ou mesmo adaptar a nossa identidade para estar bem fora de casa.
Saber quem somos é um processo sempre em andamento, porque quanto mais nos expomos a eventos, informações, pessoas e experiências, mais aprendemos sobre aquilo que conseguimos suportar até aquilo que não toleramos de jeito nenhum.
Mas voltamos à questão, do “eu sou o que eu faço.”
Se tirar todas as suas atividades profissionais remuneradas e não remuneradas, você sabe dizer quem você é?
Isto é uma questão que sempre me intriga. Hoje, ainda bem que positivamente. Porque no início foi um pouco aflitivo, sabe. Essa coisa de emigrar sozinha e muito nova, obrigou-me a pensar sobre isso, a repaginar a minha vida profissional e a desprender a Denise da profissão.
E daí vem a grande reflexão de hoje:
Até que ponto conseguimos dissociar a profissão, o que a pessoa faz, daquilo que a pessoa é?
Já fiz diversos experimentos sociais e é até engraçado o tipo de reações que já obtive. Exemplo: se alguém foca em discutir ideias ao invés de se apresentar, há quem ache estranho e especule que a pessoa tem algo a esconder, porque nunca fala de si. Se a pessoa apresenta-se dizendo o que gosta de fazer, seus interesses pessoais, pode até despertar a atenção dos ouvintes, isso se estes tiverem os mesmos interesses… Ou, do contrário, pode soar um pouco egocêntrico, para o ouvido de alguns.
Disclaimer Atenção que isto é apenas um relato experimental com observações das minhas experiências sociais, em relação ao comportamento humano, em diferentes contextos culturais. Mais especificamente: Brasil, Alemanha e Portugal.
Agora sabe uma coisa que nunca falha? É a pessoa se apresentar dizendo a sua profissão, o que faz ou onde trabalha. Ou seja, falar sobre trabalho boa parte do tempo. Porque qualquer coisa fora disso, quebra muito a expectativa do outro… seja positivamente ou não. Depende de como você vê as coisas.
É por isso que me intriga e me coloca em muitos questionamentos. Será que falar o currículo primeiro é mais confortável? Afinal evita o desconforto de mostrar quem você é à primeira vista. Será a necessidade de firmar um status? Será por que a pessoa simplesmente sempre fez isso, aprendeu dessa forma e as pessoas à sua volta fazem o mesmo e por isso tá tudo certo?
Confesso que a Alemanha foi a que mais contribuiu em mim para esse, digamos, despertar. O trabalho lá é um valor muito forte. Tanto é que se você não trabalha, por qualquer que seja o motivo, o tom da conversa muda completamente. Existe um incômodo, principalmente por existir aquele senso de responsabilidade social muito forte, do gênero:
“Eu tô trabalhando e pagando impostos para manter os transportes, a saúde e a educação em funcionamento. Você está contribuindo com o quê?”
Essa explicação com estas mesmas palavras foram ditas por uma grande amiga alemã, numa tarde filosófica com café e a grande questão:
Sem o meu trabalho eu sou sequer alguém nesse mundo?
Ter essa responsabilidade de cidadão, ein Bürger, é importante e pode até soar maravilhoso à primeira vista, em detrimento daquele que não está a trabalhar.
Mas é preciso ter cuidado… nem tudo é uma moeda de dois lados. É necessário questionar:
Por que o outro não trabalha?
É um cuidador de crianças ou idosos?
Está dando prioridade aos estudos? Ou precisa de mais estudo e por isso não consegue oportunidades?
Atente para o que eu vou dizer a seguir:
Nem tudo é vadiagem à primeira vista.
Além disso, também é preciso refletir:
Será que aquele que trabalha, quando por um infortúnio perder o emprego, não pode cair profundamente em uma crise de identidade? Por justamente nunca ter descoberto quem é para além do trabalho?
Fica então o convite para cada um refletir sobre as suas âncoras. A sociedade muda. As relações de trabalho e interpessoais mudam. Você muda. Observe e respeite essas mudanças, colocando em questão:
Quem sou eu sem o meu trabalho?
É provável que você encontre a sua verdadeira ordem de prioridades na resposta.
Até o próximo diálogo!