“Viver é desenhar sem borracha.” Quando li esta frase algures por aí, veio ao encontro do meu pensamento um caminhão de memórias.
Seria esta a melhor definição do imigrante?
Imigrar: sair de sua terra natal para viver "ali além”, como cá dizem na Madeira.
Eu diria até que é sair de si mesmo, arriscando-me inclusive a confessar que já me sentia imigrante antes mesmo de sair de meu país. Havia qualquer coisa que não se encaixava mais. Um puzzle incompleto. Daqueles que juramos ter montado as mil minúsculas peças perfeitamente, só que não…
Ledo engano de Maria. Na verdade nada se encaixava mais. Eu simplesmente olhava para a minha vida desenhada ali no Brasil e não enxergava a possibilidade de apagar os calos que lá estavam, o que me levava, secretamente, ao desespero.
Resolvi, portanto, desenhar num plano diferente. Fiquei naquela de que ao mudar um aspecto, nesse caso o cenário, outros ângulos escondidos ou desconhecidos sobre a minha personalidade viriam a aparecer.
Isto de facto se sucedeu, descobri forças e fraquezas que desconhecia. [Ops, fraquezas?!]
E com as fraquezas, lá veio a vontade de usar a borracha metafórica de novo. Claro, né meu bem!
Ah como seria maravilhoso poder brincar de marionete com a vida e antever os passos antes mesmo deles acontecerem. Escrever rascunhos nunca publicados. Apagar o que deixa feio e vergonhoso.
Mas não é assim que funciona e, como tal, não havia borracha. Nunca houve.
Coloquei então a Alemanha como meu primeiro plano de fundo. Por diversas razões culturais e linguísticas com as quais me identifico até hoje.
Depois Portugal, por literalmente acidente de percurso. [Verdade e longa história.]
A seguir, Alemanha mais uma vez e, finalmente, Portugal de novo, outra vez, para mostrar como só um pleonasmo vicioso consegue reforçar a ironia da volta dos que não foram.
Nossa, como ficou linda e exuberante a nova vida desenhada em meio aos diferentes planos de fundo.
E você pode estar pensando: “Nossa, que privilégio!”
É verdade, reconheço que é um privilégio tudo que alcancei, mesmo ralando bastante, comparado à realidade de outras pessoas. Eu consegui mudar 4 vezes de país. E consegui ser feliz e bem sucedida onde tanto sonhei estar: na Alemanha.
Teve um preço alto? Vish… se teve… Só meu marido e minha filha sabem as noites mal dormidas, o contar dos trocos e os chãos lavados até chegar à ocupação e estado de espírito que almejei.
Porém Vivi e Saboreei cada instante lá vivido, mesmo com os custos a mim concedidos.
Na partida, ainda tive a felicidade de ouvir do meu melhor amigo alemão o seguinte:
“Venceste na Alemanha, um país muito complicado de se vencer, tens que te orgulhar disto. Não é todo mundo que realiza um sonho tão jovem.”
Ouvir isto de um alemão, nativo do país que me trouxe muitas alegrias e aprendizagens, faz até a gente esquecer da tal borracha.
Ele tem razão. Por que desejar apagar o lado B da vida? Lembra do vinil? Muitas vezes as melhores músicas estavam no lado B, segundo a minha experiência de ouvinte. Diz-me lá se não tinhas essa impressão?
E a Kelly Clarkson que canta aquela música “what doesn’t kill you makes you stronger…” ? Será mesmo que tudo aquilo que não te mata pode te deixar mais forte?
Bem, depende… Estresse pós traumático, principalmente pós-guerra, diz o contrário.
Coincidência ou não. Óbvio ou não. Toda mudança nos deixa absurdamente pensativos sobre nossas escolhas. Se foi o ideal, o correto, o apropriado… não tenho como saber, ainda. Tenho que simplesmente ligar o foda-se e me jogar! (No sentido metafórico, pelo amorrrr.)
E meio que foi assim que eu me joguei novamente em Portugal, na Ilha da Madeira.
Já tenho uma coleção de “Lados Bs” desenhados por aqui, mas continuo me esforçando para acreditar que este lugar é o melhor para nós neste momento.
O senhor Millôr Fernandes sabia muito bem que borracha não foi feita para metáforas com a vida, vida nossa de migrantes a embarcar diariamente em novas viagens para dentro de nós mesmos.
Mas façamos como ele diz: vamos desenhar a vida sem borracha e transformar perrengues em narrativas, pois depois que passa, você já sabe, a gente sempre ri.
E tem sempre alguém que lê.